Todas as noites temos o ritual de ir para a cama: a M. lava os dentes, toma as gotas do fluor, mudo-lhe a fralda e deixo-a escolher até quatro livros. Ela lá vai até à estante, dizendo ou tirando, quando consegue, os livros pretendidos para aquela noite, confirmando com um sim convicto de cabeça. É engraçado como esta criança tão pequena já sabe tão bem o que quer. Alguns dos livros já têm nomes. Por exemplo, os do Ruca ou o do Noddy são "Cuca" e "Nódi", "A mão pintada" é a "mão", um desdobrável sobre as cores que acaba com um balão é o "bão" e por aí afora. Depois, sentamos-nos na cama de visitas, que ainda está no quarto dela, e leio-lhos um a um. A M. não gosta de os ouvir ao colo - tem antes de se sentar ao meu lado, encostada, ou melhor, refastelada, no meu flanco esquerdo, chuchando violentamente, enquanto massaja as orelhas da Lola. No final da leitura, ou quando dá sinais de cansaço por já não ser capaz de ouvir o livro até ao fim, declaro o fim da sessão, pego nela ao colo e vamos à sala dar um beijinho de boa-noite ao pai. Dá o beijinho prontamente e depois, durante uns tempos, logo a seguir, quando saímos da sala enquanto o pai lhe vai dizendo para dormir bem, começava a fazer cara de choro e desatava num pranto só visto. Um choro sentido, convicto e sonoro, mas sem guerras, como alguém resignado à sua sorte. Arranjei uma forma de a acalmar e convencer de que está na hora da cama com as ovelhas fluorescentes que estão coladas na parede por cima da sua cama. Basicamente, perguntava-lhe quem é que estava à espera dela para fazer ó-ó, ao que ela me respondia por entre o choro "mé-mé!". E eu lá lhe explicava que elas já estavam fartas de esperar para dormir com ela e ela parava com a fita, pedia-me miminhos por instantes e para atirar de seguida o corpo para o lado, para se deitar. A certa altura, era de tal forma, que ela assim que entrava no quarto, antes que eu dissesse alguma coisa, dizia logo por entre os soluços, "mé-mé!!!", assumindo que aquele era o seu desgraçado destino. Era mesmo cómico. Com o tempo, habituou-se à ideia e hoje em dia, já não chora. Só tem uma exigência, ou melhor duas: tenho de ser eu a cumprir o ritual e quando a deito depois do meu beijo de boa-noite, tenho de me sentar no puff até ela adormecer, sem grandes fitas. Ou seja, tenho pelo menos para cerca de uma hora de ritual nocturno todos os dias, mas sabe-me bem...